Uma das melhores coisas da internet é a possibilidade de se ouvir rádios de todo o mundo. Um dos meus passatempos prediletos, ouvir os diferentes sotaques e saber um pouco do que acontece pelo mundo, direto das fontes.
Entre as minhas favoritas está uma rádio AM que, apesar de ficar em Montevidéu, tem um jeitão de rádio de cidade pequena do interior.
Só música e "reclames" à moda antiga: locutores de voz empostada lendo os textos objetivos e diretos.
A Clarín "quinientos ochenta, radiodifusión las veinticuatro horas al dia, todo el año, para toda la banda oriental del Plata e, por banda ancha a todo el mundo..." orgulha-se de preservar a devoção à música típica e folclórica da região e ao imortal Carlos Gardel.
As 24 horas da programação são preenchidas, além dos reclames, por tangos e milongas e "en todas las horas pares, canta Gardel..."
Pois, dia desses, servia a Clarín de trilha sonora para o trabalho no computador quando a horas tantas (com certeza hora par) Gardel solta a voz e rasga o verbo:
"Alzan las cintas; parten los tungos
como saetas al viento veloz..."
e, na mente, o partidor também abre as portas e as lembranças disparam em tropel frenético...
"Detras va el Pulpo, alta la testa
la mano experta y el ojo avizor..."
El Pulpo, el Eximio, el Maestro é Irineo Leguisamo (1903-1985), considerado o ginete mais importante do turfe sul-americano do século XX.
Homenageado por Modesto Papávero neste tango (Leguisamo solo) popularizado por Gardel, aficionado do turfe (ouça Palermo e Por una Cabeza) e amigo de Leguisamo, a quem confiou seu cavalo Lunático (melhor nome ever. Já que o turfe envolve doses cavalares - não resisti ao trocadilho infame - de insanidade que só as paixões despertam).
"Siguen corriendo; doblan el codo,
ya se acomoda, ya entra en acción...
Es el maestro el que se arrima
y explota un grito ensordecedor..."
gorjeia o Zorzal.
As lembranças se agitam, talvez por que Leguisamo nasceu na província de Salto, num lugar de profético nome: Potreros de Arerunguá. Província de Salto de onde vieram ancestrais maternos. Ou por que nesta linha de ancestrais houve um outro apaixonado pelos cavalos: seu Ricarth, o Capitão.
Avô meio lenda urbana: sempre longe, andando de hípica em hípica, treinando los tungos e, de quebra, dando um rumo na vida para algum garoto franzino com jeito para montar um zaino (de pelo e de gênio). E quando por perto contador de histórias fantásticas e encantadoras.
"Leguisamo solo!..."
gritan los nenes de la popular.
"Leguisamo solo!..."
fuerte repiten los de la oficial.
"Leguisamo solo!..."
ya esta el puntero del Pulpo a la par.
"Leguisamo al trote!..."
y el Pulpo cruza el disco triunfal.
As lembranças ficam mais vivas. O filme da memória projetado na retina. Os gritos do povaréu, encostado na cerca de mourões de eucalipto, misturado ao eco dos cascos batendo no chão de terra; partículas de poeira dançando num raio de sol, alheias ao drama de pescoços, ancas e pernas com músculos contraídos de zainos; colorados; baios; gateados; rosilhos; tobianos e tordilhos numa epopeia retratada com todos os matizes impressionistas.
Impossível não sentir de novo os cheiros de suor, de humanos e equinos, de grama pisoteada, de terra molhada quando alguma garoa descia sem avisar, misturados ao odor da iguaria mor da gastronomia hípica: pastel de cancha reta! fresquinhos, recém saídos da banha quente e que seriam devidamente degustados acompanhados, ou não, de um guaraná Charrua; uma laranjinha Balvedi ou Minuano limão.
Estes poucos momentos compensavam a não presença. Melhor do que tudo era compartilhar do brilho no olhar, do sorriso largo, poder fazer parte deste mundo único e particular, que aos olhos de uma criança era simplesmente mágico!
...e cruza o disco triunfal! Gracias Capitão!!